segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

- Jostein Gaarder em O Dia do Curinga:

De repente, os raios do sol da tarde incidiram sobre a pequena vidraça fazendo o aquário reluzir. Foi então que vi que o peixinho não era apenas alaranjado. Também era vermelho, amarelo e verde. A água e o vidro do aquário se tingiram, então, das cores do peixe e ficaram parecendo um estojo completo de aquarela. E quanto mais eu observava o peixe, o aquário e a água, tanto mais me esquecia de onde estava. Por alguns segundos cheguei a acreditar que eu mesmo era o peixe dentro do aquário e que o peixe estava do lado de fora, me olhando.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

- García Marquez em Memórias de Minhas Putas Tristes:

Tinha uns olhos de gata fujona, um corpo tão provocador com roupa ou sem, e uma cabeleira frondosa de ouro alvoroçado e cuja emanação de mulher me fazia chorar de raiva no travesseiro. Sabia que nunca chegaria a ser amor, mas a atração satânica que exercia sobre mim era tão ardorosa que tentava me aliviar com tudo que era dama da vida de olhos verdes que encontrava no meu caminho. Nunca consegui sufocar o fogo de sua lembrança na cama de Pradomar, e assim entreguei-lhe minhas armas, com pedido formal de mão, troca de anéis e anúncio de boda antes de Pentecostes.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

- Fernando Morais em Olga - A Vida de Olga Benario Prestes, judia comunista entregue a Hitler pelo governo Vargas:

Vestida rigorosamente na moda para manter o disfarce, Olga cortara o cabelo um pouco abaixo da linha do queixo e, à saída dos teatros, atraía a atenção dos homens com seus vestidos parisienses, que lhe atribuíam uma silhueta fina e elegante. Todos os seus vestidos chegavam ao tornozelo, conforme as determinações dos costureiros franceses. Rapazes de chapéu panamá diminuíam a velocidade de suas baratinhas quando a viam, para dirigir-lhe respeitosos e enfatuados galanteios, que nem sempre Olga entendia direito.

sábado, 14 de novembro de 2009

- Martin Page em Como me Tornei Estúpido:

Nesse lugar improvável, muitas noites por semana, com os seus amigos, ele brincava de retrato chinês, de inventar novos países, e do jogo que eles chamavam "o jogo do mundo se divide em dois". É um jogo que consiste em encontrar as verdadeiras divisões do mundo, as que são verdadeiramente pertinentes, uma vez que, infalivelmente, o mundo se divide sempre em dois: os que gostam de passear de bicicleta e os que rodam rápido de carro; os que deixam a camisa fora da calça e os que a põem para dentro; os que tomam chá sem açúcar e os que o tomam com açúcar; os que pensam que Shakespeare é o maior escritor de todos os tempos e os que pensam que o maior deles é André Gide; os que gostam dos Simpsons e os que gostam de South Park; os que gostam de Nutella e os que gostam das couves-de-bruxelas. Com real preocupação antropológica, eles compunham, assim, as listas das divisões fundamentais da humanidade.

domingo, 8 de novembro de 2009

- Lewis Carroll em Alice no País do Espelho:

- Não vou reconhecê-la, no caso de nos encontrarmos de novo - replicou Humpty Dumpty, em um tom de voz muito aborrecido, dando-lhe apenas um dos dedos para que ela apertasse. - Você é tão parecida com todas as outras pessoas!

- Em geral, é o rosto que faz com que sejamos reconhecidos - observou Alice, pensativa.

- É justamente disso que estou me queixando - disse Humpty Dumpty. - Seu rosto é igual à cara de todo mundo. Os dois olhos, assim... (marcando os lugares no ar com o polegar) o nariz bem no meio, a boca embaixo. É sempre, sempre, sempre a mesma coisa. Agora, se você tivesse os dois olhos do mesmo lado do nariz, por exemplo, ou a boca por cima deles, isso tornaria seu rosto mais interessante e me ajudaria bastante a reconhecê-la!

- Ah, mas não seria bonito - objetou Alice.

Porém, Humpty Dumpty apenas fechou os olhos e respondeu:
- Espere para dar uma opinião sobre alguma coisa até que a tenha experimentado.

domingo, 1 de novembro de 2009

- Nelson Rodrigues em O Óbvio Ululante - Primeiras Confissões:

E conversamos de tudo. Houve um momento em que o Celso abriu o coração. Fala: - "A morte do meu pai". E acrescenta, como quem pede desculpas: - "Ainda não me recuperei". Por um momento, tive vontade de pedir-lhe: - "Nem se recupere, nunca, nunca". Eis a nossa degradação: - sofrer menos, cada vez menos, até esquecer. Desde menino sou um fascinado pela grande dor (acho que a grande dor não passa jamais). E não disse nada ao Celso, não lhe fiz o apelo: - "Sofra, sofra".

terça-feira, 27 de outubro de 2009

- Gabriel García Marquez em O Amor nos Tempos do Cólera:

Fosse como fosse, lhe dava trabalho entender que dois adultos livres e sem passado, à margem dos preconceitos de uma sociedade fechada em si mesma, tivessem escolhido o risco dos amores proibidos. Ela lhe explicou: "Era seu gosto". Além disso, a clandestinidade compartilhada com um homem que nunca tinha sido seu por completo, e na qual mais de uma vez conheceram a explosão instantânea da felicidade, não lhe pareceu uma condição indesejável. Ao contrário: a vida lhe havia demonstrado que talvez fosse exemplar.

domingo, 25 de outubro de 2009

- Mario Vargas Llosa em Travessuras da Menina Má:

Apertei sua cintura, atraindo-a para mim, e disse que se ela resolvesse esquecer monsieur Arnoux e se casar comigo eu prometia deixá-la ter uma vida normal, criando todos os cães que quisesse. Em vez de responder, perguntou, zombeteira:

- A idéia de passar a noite comigo faz você se sentir o homem mais feliz do mundo, miraflorense? Pergunto só para ouvir uma dessas breguices que você tanto gosta de falar.
- Nada poderia me deixar mais feliz - disse eu, apertando meus lábios contra os dela. - Há anos que sonho com isso, guerrilheira.
- Quantas vezes vai fazer amor comigo? - continuou, com o mesmo jeitinho debochado.
- Todas que puder, menina má. Dez, se o corpo agüentar.
- Só deixo duas - avisou, mordendo a minha orelha. Uma na hora de deitar e outra de manhã. Mas nada de levantar cedinho. Para não ter rugas, nunca, preciso no mínimo de oito horas de sono.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

- Marcelo Rubens Paiva em Feliz Ano Velho:

O espelho nos dá esta sensação mágica de, subitamente, tomar consciência de si mesmo. É o momento que você se encontra com o que você representa para o mundo. "Ah, então é assim que eu sou." Repare que em frente ao espelho, a gente sempre faz uma careta. É porque achamos que somos diferentes daquilo que realmente somos.
- José Saramago em Memorial do Convento:

se não houvesse tristeza nem miséria, se em todo o lugar corressem águas sobre as pedras, se cantassem aves, a vida podia ser apenas estar sentado na erva, segurar um malmequer e não lhe arrancar as pétalas, por serem já sabidas as respostas, ou por serem estas de tão pouca importância, que descobri-las não valeria a vida duma flor.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

- Alex Haley em Negras Raízes:

Com a voz trêmula, Massa Muray leu bem devagar o que estava escrito no papel em sua mão, dizendo que o sul perdera a guerra. E fazendo um esforço tremendo para não sufocar, diante da família preta parada a sua frente, ele acrescentou:
- Acho que isso significa que vocês são tão livres quanto nós. Podem ir embora, se quiserem. Podem ficar, se preferirem. E quem quer que decida ficar, eu tentarei pagar alguma coisa...

Os Murray pretos começaram a pular, cantar, rezar, gritar, numa explosão de alegria renovada.
- Somos livres!
- Finalmente, livres!
- Obrigado, Jesus!

(...)

- Liberdade! Liberdade!

Ao ouvir, Uirah se levantou e saiu correndo da cabana. Foi primeiro até o chiqueiro e gritou:
- Porcos! Podem parar de grunhir! Vocês agora são livres!
Depois foi até o estábulo:
- Vacas! Podem parar de dar leite! Vocês agora são livres!
E em seguida foi para o galinheiro:
- Galinhas! Podem parar de botar ovos! Vocês agora são livres... E EU TAMBÉM SOU!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

- Contardo Calligaris em O Conto do Amor:

Quando eu conversava com Giorgio (esse era o nome do rapaz) e escutava suas idéias confusas, parecia-me que suas escolhas eram ditadas por uma única razão: ele não conseguia achar graça na vida como ela é. Não sabia trocar duas palavras com o vizinho ou ficar parado para não incomodar o passarinho que pousa na mesa do restaurante. Não cantarolava no banho. Não sabia o que era a alegria de esbarrar num quadro, num desenho, num edifício que nos comove; não sabia nada da beleza.

Para que a vida tivesse graça, era como se ele precisasse brincar com fogo.

Há uma geração, Pinin, que perdeu o entusiasmo de viver. Eles não conseguem encontrar nas esquinas do dia-a-dia o punhado de aventura que é necessário para colorir a vida. Pagam qualquer preço para se envolver numa história que lhes dê a ilusão de fazer parte da História.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

- J. D. Salinger em O Apanhador no Campo de Centeio:

Há uns dois anos conheci uma garota que era ainda mais safada do que eu. Safada é apelido. De uma maneira meio marota, é claro. Sexo é o tipo da coisa que não consigo entender direito. A gente nunca sabe em que ponto está. Vivo estabelecendo uma série de regras sexuais para mim e aí, não demora muito, desobedeço a todas elas. No ano passado resolvi nunca mais ficar me esfregando com nenhuma pequena que, no fundo, eu achasse uma chata. Na mesma semana quebrei a regra - para dizer a verdade, na mesma noite. Passei a noite toda atracado com uma cretina terrível, chamada Anne Louise Sherman. Sexo é um troço que não entendo mesmo. Juro que não entendo.

sábado, 17 de outubro de 2009

- Milan Kundera em O Livro do Riso e do Esquecimento:

A irresistível proliferação da grafomania entre os políticos, os motoristas de táxi, as parturientes, os amantes, os assassinos, os ladrões, as prostitutas, os prefeitos, os médicos e os doentes me demonstra que todo homem sem exceção traz em si sua potencialidade de escritor, de modo que toda a espécie humana poderia com todo direito sair na rua e gritar: Somos todos escritores!

Pois cada um de nós sofre com a idéia de desaparecer, sem ser ouvido e notado, num universo indiferente, e por isso quer, enquanto é tempo, transformar a si mesmo em seu próprio universo de palavras.

Quando um dia (isso acontecerá logo) todo homem acordar escritor, terá chegado o tempo da surdez e da incompreensão universais.