sexta-feira, 20 de novembro de 2009

- Fernando Morais em Olga - A Vida de Olga Benario Prestes, judia comunista entregue a Hitler pelo governo Vargas:

Vestida rigorosamente na moda para manter o disfarce, Olga cortara o cabelo um pouco abaixo da linha do queixo e, à saída dos teatros, atraía a atenção dos homens com seus vestidos parisienses, que lhe atribuíam uma silhueta fina e elegante. Todos os seus vestidos chegavam ao tornozelo, conforme as determinações dos costureiros franceses. Rapazes de chapéu panamá diminuíam a velocidade de suas baratinhas quando a viam, para dirigir-lhe respeitosos e enfatuados galanteios, que nem sempre Olga entendia direito.

sábado, 14 de novembro de 2009

- Martin Page em Como me Tornei Estúpido:

Nesse lugar improvável, muitas noites por semana, com os seus amigos, ele brincava de retrato chinês, de inventar novos países, e do jogo que eles chamavam "o jogo do mundo se divide em dois". É um jogo que consiste em encontrar as verdadeiras divisões do mundo, as que são verdadeiramente pertinentes, uma vez que, infalivelmente, o mundo se divide sempre em dois: os que gostam de passear de bicicleta e os que rodam rápido de carro; os que deixam a camisa fora da calça e os que a põem para dentro; os que tomam chá sem açúcar e os que o tomam com açúcar; os que pensam que Shakespeare é o maior escritor de todos os tempos e os que pensam que o maior deles é André Gide; os que gostam dos Simpsons e os que gostam de South Park; os que gostam de Nutella e os que gostam das couves-de-bruxelas. Com real preocupação antropológica, eles compunham, assim, as listas das divisões fundamentais da humanidade.

domingo, 8 de novembro de 2009

- Lewis Carroll em Alice no País do Espelho:

- Não vou reconhecê-la, no caso de nos encontrarmos de novo - replicou Humpty Dumpty, em um tom de voz muito aborrecido, dando-lhe apenas um dos dedos para que ela apertasse. - Você é tão parecida com todas as outras pessoas!

- Em geral, é o rosto que faz com que sejamos reconhecidos - observou Alice, pensativa.

- É justamente disso que estou me queixando - disse Humpty Dumpty. - Seu rosto é igual à cara de todo mundo. Os dois olhos, assim... (marcando os lugares no ar com o polegar) o nariz bem no meio, a boca embaixo. É sempre, sempre, sempre a mesma coisa. Agora, se você tivesse os dois olhos do mesmo lado do nariz, por exemplo, ou a boca por cima deles, isso tornaria seu rosto mais interessante e me ajudaria bastante a reconhecê-la!

- Ah, mas não seria bonito - objetou Alice.

Porém, Humpty Dumpty apenas fechou os olhos e respondeu:
- Espere para dar uma opinião sobre alguma coisa até que a tenha experimentado.

domingo, 1 de novembro de 2009

- Nelson Rodrigues em O Óbvio Ululante - Primeiras Confissões:

E conversamos de tudo. Houve um momento em que o Celso abriu o coração. Fala: - "A morte do meu pai". E acrescenta, como quem pede desculpas: - "Ainda não me recuperei". Por um momento, tive vontade de pedir-lhe: - "Nem se recupere, nunca, nunca". Eis a nossa degradação: - sofrer menos, cada vez menos, até esquecer. Desde menino sou um fascinado pela grande dor (acho que a grande dor não passa jamais). E não disse nada ao Celso, não lhe fiz o apelo: - "Sofra, sofra".